sábado, 2 de agosto de 2014

Noites Brancas - Fiódor Dostoiévski

Nota: 10/10
Título: Noites Brancas
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Nivaldo dos Santos
Editora: Editora 34
Páginas: 96
ISBN: 978-85-7326-335-0
Ilustrações: Livio Abramo

Sinopse: Durante uma das singulares "noites brancas" do verão de São Petersburgo, em que o sol praticamente não se põe, dois jovens se encontram numa ponte sobre o rio Nievá e dão início a uma história repleta de fantasia e lirismo. Publicado em 1848, na contracorrente da época, que privilegiava o Realismo, este livro é, na obra de Dostoiévski, aquele que mais se aproxima da escola romântica. Não apenas pelo tipo do Sonhador, figura central da novela, mas também pela atmosfera delicada e fantasmagórica, que envolve a trama, o cenário e os protagonistas. Aqui, a própria cidade de São Petersburgo - com seus palácios e pontes, seus espaços monumentais - revela-se como personagem. Não por acaso, Noites Brancas atraiu a atenção de diretores de cinema como Luchino Visconti e Robert Bresson, que procuraram traduzir uma das obras mais famosas de Dostoiévski - agora pela primeira vez no Brasil em tradução direta do russo.                 
                
A leitura de Noites Brancas (Biélye Nótchi) me comprovou a capacidade enigmática que teve Dostoiévski em transportar seus leitores para dentro da mente dos personagens. De repente estamos lá, inseridos nos pensamentos deles, passando pelos mesmos problemas e alegrias ao longo da narrativa. Tive essa mesma experiência ao ler Crime e Castigo, (outra obra recomendadíssima desse mesmo autor) e agora, em Noites Brancas, mergulhei novamente na “alma” do personagem que narra essa pequena estória.
                O livro é dividido em quatro noites e uma manhã (cinco capítulos), descritas de forma bem lírica e intensa, que se encaixa perfeitamente com o número pequeno de páginas (demorei pouco mais que uma tarde para terminá-lo). O inicio do livro pode parecer um pouco confuso e obscuro, mas esse é um fato bastante compreensível, já que é justamente ali que o protagonista descreve sua complexa personalidade. No entanto, basta reler alguns poucos trechos e logo a narrativa flui sem grandes transtornos.




                O narrador (personagem principal) não recebeu um nome específico, mas se autodescreve como um sonhador, o que se confirma em toda a narrativa. Esse sonhador é um jovem solitário e introspectivo, morador da cidade russa de São Petersburgo, onde vive há oito anos sem ter conquistado uma amizade sequer! Sua felicidade consiste basicamente em momentos nos quais ele cria suas próprias fantasias, escapando, dessa maneira, de sua realidade constantemente vazia e monótona. Porém, cada uma dessas viagens pelo mundo da imaginação termina em desilusões melancólicas, que confrontam o personagem com sua triste vida real, acometendo-o a um quadro de profunda angústia e solidão. Aqui é possível sentir a densidade psicológica e emocional do personagem, bem como seu desespero ao tentar fugir do que ele mesmo chama de “vida autêntica”, isto é, da vida no plano real, ao invés do imaginário.


                Certa "noite branca" (fenômeno natural, frequente em São Petersburgo, em que o sol não se põe totalmente no céu durante a noite), após um passeio pelos arredores da cidade, o sonhador encontra a jovem Nástienka chorando, escorada no canal de um rio que cruza a cidade. Quando ele tenta se aproximar, a jovem se esquiva para a outra calçada, onde um bêbado passa a importuná-la. O sonhador toma coragem, “salva a moça” e recebe como recompensa a oportunidade de levá-la para casa. Nesse caminho, ele faz sua primeira amizade até então, e pede à moça que o encontre na noite seguinte. Nástienka aceita, impondo a condição de que eles só poderiam ser amigos e nada mais.

"Noite Branca" em São Petersbrugo

                Na outra noite, ambos se encontram e compartilham suas histórias pessoais. Nesse ponto, o sonhador se descreve de forma bastante poética e elevada, sem incorrer em excessos de drama e vagueza. Por outro lado, também é aqui que descobrimos a simplicidade e fragilidade da jovem Nastiénka, com apenas 17 anos, quando esta apresenta a sua história e o seu atual conflito.
                Resumidamente, após seus pais morrerem, ela foi viver com a avó, uma senhora cega e bastante conservadora, em uma casa de dois andares onde alugam o andar de cima (mezanino). Após Nástienka cometer uma travessura não descrita no livro, a avó resolve prendê-la (de forma totalmente bizarra) na aba do seu vestido com um grampo e, desde então, ambas passam dias intermináveis uma ao lado da outra. Essa atitude inusitada toma contornos bem constrangedores quando um novo inquilino (este também sem nome específico), jovem e bonito, aluga o mezanino.  Ao ver a situação de Nástienka, ele se propõe a ajuda-la e consegue, após uma boa jogada de persuasão, levar tanto a jovem quanto a avó a um musical. A jovem se apaixona pelo inquilino, mas, para seu azar, ele passa a evitá-la, até que este resolve voltar para Moscou. A jovem, em um ímpeto de desespero, faz uma trouxa, bate na porta do inquilino e diz que fugirá com ele. Como resposta, ela recebe uma promessa: dentro de um ano ele voltaria e, se obtivesse sucesso em seus negócios, se casaria com ela.
                Passaram-se exatamente um ano e três dias, o inquilino estava novamente na cidade, mas não havia procurado por Nastiénka. Esse é o motivo pelo qual ela estava chorando junto ao rio, na noite em que o sonhador a encontrou. Ao ver e entender o sofrimento da jovem, o sonhador inicia uma série de ações em busca de ajudá-la a se comunicar com seu pretendente. Porém, no transcorrer da narrativa, ele acaba se apaixonando por Nástienka, e daí nasce o conflito mais empolgante da obra, especialmente quando o sonhador percebe algumas evidencias de que a jovem também estaria se interessando por ele.                 Será que ele expressará seu amor por Nástienka? Será que ela abandonará seu desejo de casar com o inquilino? O que ela realmente sente pelo sonhador? Essas e outras muitas dúvidas que surgem ao longo da leitura são respondidas no final da terceira noite e na manhã, que, nas palavras do sonhador, nos causam um “enxame de sensações”. O encerramento do livro realmente provoca um misto de perplexidade, comoção e até mesmo um pouco de raiva. No entanto, predomina aquele sentimento de satisfação, típico de quando lemos um livro muito bem produzido, com um final que se encaixa perfeitamente à obra.



                O que mais me impressionou, além de “entrar” na mente do personagem, foi o modo como Dostoiévski transforma situações meramente cotidianas em uma análises profundas, tratando sobre as contradições próprias do ser humano e de sua existência. Isso fica evidente durante a caminhada do sonhador pelas redondezas de São Petersburgo e, em especial, quando ele conta sua história para Nástienka. As angústias, a solidão e as esperanças de cada personagem são descritas de modo envolvente e poética. Além disso, é necessário bastante atenção para aquilo que o autor que dizer nas entrelinhas. Vi que enquanto se lê Noites Brancas, é possível ler uma espécie de “outro livro” ao mesmo tempo se o leitor atentar para as entrelinhas e detalhes sutilmente lançados ao longo da narrativa.
                Essa edição da Editora 34, traduzida diretamente do russo, é muito agradável de manusear e contém algumas ilustrações muito interessantes do artista brasileiro Livio Abramo. No final do livro, há um posfácio excelente escrito pelo tradutor da obra (Nivaldo dos Santos) e breves biografia tanto do autor, do ilustrador e do tradutor. Uma produção que você não pode deixar de ler !



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